terça-feira, 23 de setembro de 2008

A menina que chora na cadeira do dentista.


Ele nem ligou a broca, sequer ativou o motor, mas as lágrimas dela já rolam.
Ele não nota, esta ocupado com as ferramentas, com a esterilização, com a luz na posição correta, os espelhos, os demais aparelhos.
Ela aguarda na cadeira, inclinada.
Ela também não faz escândalo. Não tem medo de dentista.
Deixa as lágrimas escorrerem discretamente pelo canto dos olhos, de vez em quando engole um soluço teimoso. A posição da cadeira ajuda, a do refletor também.
Ela esperou o dia todo por esta consulta, não pelo dente, levemente careado, talvez mal escovado, mas sem dor. Esperou apenas pra poder chorar.
Caso ele note, como é discreto vai calar, ela nem sabe se ele já notou, já chorou tantas vezes naquela cadeira.
Nenhuma delas por medo, nenhuma por dor. Ele é hábil, ela é esperta.
Pode até alegar insegurança, nervoso.
Há um motivo pra disfarçar.
Há um dentista discreto pra guardar segredo.
Ela não tem vergonha, ali estão só os dois, num pacto silencioso de moralidades tênues.
Ele pergunta da dor, pergunta da escovação, do tártaro, do fio dental: “tem usado?”
Ela responde com econômicos grunhidos: ahãn.
Ele sorri.
Será que ele sabe ?
Tudo é lento, como se ele colaborasse pra ela chorar o quanto fosse preciso, e mais.
Ela olha para a luz, mexe os pés, ajeita o salto, ouve algum comentário.
O motor é ligado, o som enche o consultório, a obturação esta em execução.
Ela olha para ele enquanto ele trabalha. Vigia se ele repara. Ele não repara. Esta concentrado. Trabalhando.
Uma idéia divertida e tola lhe passa pela cabeça: “e se eu pedisse pra ele obturar dentro de mim ? Colocar amálgama nas lacunas do meu ser ?”
Não contem um sorriso torto, entre motores e contensores de saliva.
Ele desviou os olhos da obturação, devolveu o arremedo de sorriso (como ele notou que ela havia sorrido?) e continuou trabalhando.
Ele sabe, ela concluiu.